
Universitários das cotas conquistam sucesso no mercado
Vindos de comunidades pobres, os estudantes negros precisam superar o preconceito na sala de aula
Márcia Vieira - AE
Tamanho do texto? A A A A
Negra, caçula dos sete filhos de uma servente, órfã de pai desde os nove meses de idade e moradora de Mesquita, na Baixada Fluminense, um bolsão de pobreza na periferia do Rio, Jocelene foi da primeira turma de alunos pobres a entrar para PUC, em 1995, num programa que precedeu a discussão sobre cotas nas universidades brasileiras. Foi um acordo entre Frei David Santos, fundador do Pré-Vestibular para Negros e Carentes, e a PUC que garantiu a bolsa para os alunos que passassem no vestibular.
A discussão sobre a política de cotas nas universidades brasileiras ainda está longe de acabar. Tramita no Congresso Nacional há nove anos, sem prazo para votação, um projeto que reserva 50% das vagas nas universidades federais para alunos da rede pública. O debate é acalorado. De um lado, fala-se em racismo e justiça social. De outro, argumenta-se com o medo que a reserva de cotas baixe o nível do ensino nas universidades brasileiras. Mesmo nas 35 instituições que já aderiram às cotas para inclusão de alunos pobres, ainda não há estudos suficientes sobre a eficácia do sistema.
Nas duas universidades cariocas, PUC (privada), e UERJ (pública), com sistema de cotas há cinco anos, há alguns sinais do resultado da convivência entre alunos pobres, de classe média e da elite carioca dentro do campus. As taxas de aprovação nas disciplinas e de evasão dos alunos pobres são iguais as dos outros alunos. A convivência dentro da universidade entre bolsistas ou cotistas, de um lado, e professores e alunos tradicionais, de outro, ainda é conflituosa. E não resta dúvida de que a passagem pela universidade transforma a vida, para melhor, dos alunos beneficiados.
Andréia Clapp Salvador, professora de Serviço Social da PUC, acabou de apresentar sua tese de doutorado sobre o assunto. Em "Estudo da Política de Inserção de Alunos Pobres e Negros na PUC-Rio" ela conta como foi a passagem pela universidade e o que aconteceu com os jovens que entraram pelo sistema de bolsas entre 1993 e 2001. "Eles passaram por muitas dificuldades, sobretudo econômicas, e sofreram o que eles chamam de preconceito de nota porque achavam que alguns professores não confiavam na capacidade de aprendizado deles. Mas se formaram no prazo normal e saíram daqui trabalhando nas profissões que escolheram", diz. "Chama atenção também o fato de eles serem muito politizados e extremamente solidários entre eles."
Os primeiros alunos bolsistas da PUC, todos da área social ou de humanas, formaram uma espécie de rede de proteção para sobreviver dentro do campus. Quem tinha dinheiro pagava um prato no bandejão, que era dividido com mais dois amigos. Quem era chamado para um estágio levava junto outro bolsista. Um lia o trabalho do outro. Alugavam um quitinete de 30 metros quadrados no edifício Minhocão, ao lado da PUC, onde dormiam até nove alunos que não tinham dinheiro para passagem. Andavam sempre juntos. Juntos organizaram a Semana de Consciência Negra na PUC, despertando manifestações dos alunos tradicionais, que ameaçaram fazer a Semana de Consciência Branca.
Jocelene é uma das lideranças desta rede. Entrou para Serviço Social, assim como a maioria dos alunos do PVNC daquele ano. "Só duas alunas na turma não eram bolsistas", lembra. Tomou tanto gosto pelo estudo que depois fez especialização na UFRJ, mestrado na UniRio e agora estuda no doutorado da PUC. Com tantos diplomas passou no concurso da prefeitura do Rio para assistente social. Ganha algo em torno de R$ 2,5 mil, um salário inimaginável para todas as suas amigas de infância. Umas são empregadas domésticas. Outras caixas de farmácia. A maioria está desempregada. Jocelene, que agora vive num apartamento alugado na Lapa, centro do Rio, convenceu duas irmãs a fazerem faculdade (uma em biologia e outra em geografia). Sonha ainda em fazer pós-doutorado na França e comprar um apartamento próprio. Mas acha que nunca vai parar de brigar. "Não tenho paz nunca. O tempo todo eu tenho que provar que sou capaz. Foi assim na PUC. É assim no mercado de trabalho."
A vida não é mais fácil na UERJ. Mariana Ferreira, aluna de direito da primeira turma de cotistas, lembra dos embates em sala. "As aulas eram muito efervescentes. A gente chegou com o pé na porta. Não entramos pedindo licença", lembra. "Em algumas turmas no curso de direito ainda hoje existe uma divisão. De um lado da sala ficam os cotistas, do outro os não cotistas. É muito triste." Mesmo assim, continua achando que o sistema é o melhor para promover mudança social. Mas reconhece que a vida fora da universidade é difícil. "O diploma de direito da UERJ abre muitas portas, mas mulher negra, de cabelo trançado como eu não consegue estágio fácil em escritório. Só consegui em setor público."
A batalha de Johny Fernandes Giffoni, branco, morador da comunidade do Anil, na zona oeste do Rio, é para entrar no mercado de trabalho. Filho de um motorista e de uma dona de casa, entrou para um dos cursos mais disputados da PUC, o de direito. No vestibular de 1999, passou na reclassificação junto com outros oito bolsistas numa turma de 40 alunos. No mesmo ano montou uma chapa de bolsistas e não bolsistas para o DCE (Diretório Central de Estudantes). Ganhou, mas na festa da vitória, sentiu na pele a primeira manifestação contra a sua presença na faculdade. "Uma galera, que tinha sido derrotada, cercou a gente e começou a gritar ‘seu bando de favelados, voltem para o lugar de onde vieram’. Um amigo meu partiu para cima, mas a gente segurou a onda, os seguranças apareceram e não rolou pancadaria."
Na sala, quase apanhou dos amigos no debate sobre pena de morte. Ele e os outros bolsistas eram contra. Uma grande parcela dos outros alunos a favor. As divergências eram corriqueiras. "Eles queriam discutir leis de debêntures. Eu queria discutir direito do favelado construir na laje", lembra com bom humor. Tempos difíceis, mas inesquecíveis. "Foi a melhor fase da minha vida. Eu tinha que estudar três vezes mais do que o aluno tradicional, mas cresci intelectualmente, aprendi uma profissão e no meu reboque virão mais uns dez jovens da minha comunidade que antes achavam ser impossível fazer universidade." O único problema é que a família e os vizinhos esperam que Johny fique rico depois de estudar cinco anos na PUC. "Dizem que se eu não ficar rico, ninguém mais fica no Anil."
Mais do que ficar rico, seu sonho é ser defensor público. "Não posso colocar terno e gravata e ir trabalhar num escritório. O lugar de onde eu vim continua igual. A milícia e o tráfico dominam, o esgoto não é tratado, falta água, a escola pública é ruim. Ser defensor é um projeto ideológico-político." Desde 2005 vem tentando um lugar na defensoria estadual. Não passou nas provas do Rio e de São Paulo. Mas insiste. Todo dia estuda pelo menos oito horas uma sala da PUC para o concurso em Mato Grosso do Sul e em Belo Horizonte. Vive com os R$ 400 que ganha dando aulas num curso técnico e no pré-vestibular comunitário. "Se eu passar vou ganhar um ótimo salário (cerca de R$11 mil no Mato Grosso do Sul) e ainda trabalhar no que eu gosto. Não existe um defensor público vindo da pobreza. Temos que abrir mais esse caminho."
O diploma de geógrafo pela PUC garantiu a Carlos Humberto da Silva, um ex-office boy, morador de Nova Iguaçu, até uma passagem por Harvard, a universidade americana. "Fui o primeiro brasileiro que participou do programa piloto promovido pela Harvard e a PUC." Passou também seis meses no México trabalhando numa ONG. Agora trabalha no Museu do Índio, no Rio. Só não consegue é explicar para a mãe, dona Léa, cozinheira de um hospital, o que um geógrafo faz. "Ela confunde até hoje. Disse para uma amiga, toda orgulhosa, que eu sou físico", ri.
Negros continuam a ser minoria no ensino superior
Em dez anos, aumentou a desigualdade entre brancos e negros ao se comparar freqüência e conclusão
Felipe Werneck e Wilson Tosta, de O Estado de S.Paulo
Tamanho do texto? A A A A
"Os dados refletem a insuficiência dos esforços recentes. Significa que 96% dos negros (com 25 anos ou mais) ignoram o que é universidade. Ainda há muito a ser feito", disse o professor Marcelo Paixão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2007, a taxa de freqüência para estudantes de 18 a 25 anos que se declararam brancos (19,4%) era quase o triplo da registrada entre pretos e pardos (6,8%). No ano passado, 57,9% dos estudantes brancos de 18 a 24 anos estavam no nível superior - para pretos e pardos, o porcentual foi de 25,4%.
Paixão avalia que o resultado da Síntese de Indicadores Sociais "é um reforço para aqueles que falaram sim às cotas". Mas ressalva que a política pública no setor "foi mínima". "Ficou mais no plano das intenções." A divulgação ocorre no ano em que se completam 120 anos da Lei Áurea, e uma semana após o IBGE ter mostrado que a população de pretos e pardos (49,7% do total) superou a de brancos (49,4%) no País em 2007.
Para José Luís Petruccelli, pesquisador do IBGE, o debate sobre cotas nos País é "político-ideológico". "Desde a formação das universidades no País, nunca se fez nenhum tipo de política pública para atender aos grupos subalternizados", disse. "Até hoje se questiona o pouco que está se tentando fazer, e os resultados ainda não são nem visíveis." Segundo ele, as cotas criadas nos últimos anos, por iniciativa de cerca de 60 universidades públicas, afetam uma parcela muito baixa do total de estudantes. "Menos de 30% dos universitários estão em instituições públicas. Também há o ProUni, mas afeta cerca de 100 mil estudantes. Em 5,5 milhões, isso é muito pouco", disse Petruccelli.
O estudo mostra que os pretos e pardos de 18 a 25 anos não conseguiram alcançar, no ano passado, as taxas de freqüência que os brancos apresentavam em 1997. A diferença a favor dos brancos, que continuaram a apresentar níveis mais elevados em todas as idades, aumentou no período analisado: em 1997, era de 9,6 pontos porcentuais aos 21 anos, e chegou a 15,8 pontos em 2007. Ou seja: em 1997, a taxa de jovens de 21 anos freqüentando o ensino superior era de 2,6% para pretos e pardos, e de 12,2% para brancos. Dez anos depois, chegou a 8,4% para pretos e pardos, e a 24,2% para os brancos.
Aos 18 anos, a diferença aumentou de 4,9 pontos porcentuais em 1997 para 10,1 pontos no período. "Após uma década, a composição racial das pessoas que completaram o nível superior permanece inalterada, ou até mais inadequada, em termos de representação dos pretos e pardos, continuando a se constituir um obstáculo para a ascensão social destes", observa o IBGE.
Dos 14 milhões de analfabetos brasileiros, mais da metade (9 milhões) eram pretos ou pardos em 2007. Em termos relativos, a taxa de analfabetismo da população branca foi de 6,1% para as pessoas com 15 anos ou mais de idade, ante 14% para pretos e pardos, mais que o dobro. A média de anos de estudo da população de 15 anos ou mais apresentou vantagem de quase 2 anos a mais para brancos (8,1 anos de estudo) em relação a pretos e pardos, com 6,3 anos.
O IBGE comparou os rendimentos por cor dentro dos grupos com mesmo nível de escolaridade. O rendimento-hora dos brancos era até 40% mais elevado que o de pretos e pardos, no grupo com 12 ou mais anos de estudo. Também foi comparada a participação relativa dos dois grupos na apropriação do rendimento das famílias. A distribuição entre os 10% mais pobres e entre o 1% mais rico mostra que, em 2007, os brancos eram 25,5% do total entre os mais pobres, e 86,3% dos mais ricos. Já os pretos e pardos representavam 73,9% entre os mais pobres, e apenas 12% entre os mais ricos.
Para o IBGE, os valores mostram que as desigualdades na apropriação da renda do País "têm se mantido ou até piorado um pouco, se comparadas com anos anteriores". Fundador da rede de pré-vestibulares Educafro, o frei David Santos disse que o estudo do IBGE "prova" que só é possível construir um Brasil com menos desigualdade de oportunidades se houver mais políticas de ação afirmativa "em função da realidade de cada etnia".
"Estou escandalizado com o número de negros que entram na universidade e não podem se manter porque não têm dinheiro para a passagem de ônibus, não têm emprego garantido e por isso vivem em constante instabilidade", disse. Para David, o governo federal deveria ser "mais firme corajoso" na definição de políticas "diferenciadas de inclusão", como uma bolsa de ajuda financeira para os que entram em universidades públicas por meio de cotas e aqueles que ingressam em instituições privadas pelo ProUni.
87% das crianças analfabetas estão matriculadas da 1ª à 8ª série
No País, 8,4% das 28,3 milhões de crianças entre 7 e 14 anos não sabem ler e escrever, apontam dados do IBGE
Jacqueline Farid, da Agência Estado
Tamanho do texto? A A A A
Segundo os dados do IBGE, entre as 28,3 milhões de crianças de 7 a 14 anos, que pela idade já teriam passado pelo processo de alfabetização, foram encontradas 2,4 milhões (8,4%) que não sabem ler e escrever.
Ainda de acordo com a pesquisa, entre as crianças de 10 anos, idade adequada à 4ª série, que não sabiam ler e escrever, 85,6% destas crianças estavam na escola. Aos 14 anos, idade em que se deveria concluir o ensino fundamental, o percentual de crianças que ainda não sabe ler e escrever é menor (1,7%), o que representa 58,1 mil pessoas. Porém, quase metade destas (45,8%) estavam na escola.
Os números de analfabetismo aponta que o alto índice de freqüência à escola nem sempre se traduz em qualidade do aprendizado. O levantamento mostra que, entre as crianças e adolescentes de 7 a 14 anos de idade, faixa etária correspondente ao ensino fundamental, o ensino está praticamente universalizado (97,6%).
Brics
A Índia apresentava em 2006 a mais elevada taxa de analfabetismo (34,9% da população de pessoas com 15 anos ou mais de idade) dos Brics (grupo de países com potencial mais promissor economicamente e que reúne Brasil, China, Índia, África do Sul e Rússia).
Somente a Rússia, entre os cinco países, tem taxa de analfabetismo "resolvida", ou de 0,6% nesse grupo, segundo a Síntese. A África do Sul tinha taxa de 12,4%, enquanto o Brasil apresentava taxa de 10,5% (em 2007, segundo mostrou o IBGE na semana passada, era de 10,0%). Na China, em 2006, chegava a 7,1%.
Em outra análise sobre os Brics, neste caso relativa a 2007 e sobre a estrutura etária da população, a Síntese sublinha que a Rússia e a China têm uma população mais envelhecida, contrastando com a estrutura jovem da Índia e da África do Sul. O Brasil, com as quedas dos níveis de fecundidade e mortalidade dos últimos 40 anos, vem passando por uma fase de transição.
Apenas 4% dos negros ou pardos terminam o ensino superior
Apesar da reserva de vagas, negros e pardos ainda são minorias no ensino superior, aponta estudo do IBGE
Jacqueline Farid, da Agência Estado
Tamanho do texto? A A A A
Enquanto 20,6% dos brancos de 19 anos de idade freqüentavam o ensino superior em 2007, apenas 6% dos negros e pardos estavam na mesma situação no período. Enquanto 13,4% dos brancos tinham completado o ensino superior no ano passado, apenas 4% dos negros e pardos tinham feito a mesma conquista.
Além disso, em números absolutos, em 2007, dos pouco mais de 14 milhões de analfabetos brasileiros, quase 9 milhões são negros e pardos. Em termos relativos, a taxa de analfabetismo da população branca é de 6,1% para as pessoas de 15 anos ou mais de idade, sendo que estas mesmas taxas para negros e pardos superam 14%, ou seja, mais que o dobro que a de brancos.
Outro indicador educacional que sublinha a desigualdade racial mostra que a média de anos de estudo da população de 15 anos ou mais de idade continua a apresentar uma vantagem em torno de dois anos para brancos, com 8,1 anos de estudo, em relação a pretos e pardos, com 6,3 anos de estudo.
Segundo observam os técnicos do IBGE no texto da pesquisa, "as conseqüências destas desigualdades se refletem nas diferenças dos rendimentos médios percebidos por negros e pardos em relação aos dos brancos, se apresentando sempre menores (em torno de 50%)".
Cai o número de famílias com renda de até meio salário mínimo
IBGE aponta que políticas públicas contra a pobreza têm forte resultado nas famílias do Nordeste
Jacqueline Farid, da Agência Estado
Tamanho do texto? A A A A
A pesquisa mostra também que o valor médio mensal do rendimento familiar per capita em 2007 era R$ 624,00. Entretanto, metade das famílias vivia com menos de R$ 380 por mês, o valor do salário mínimo em 2007. Regionalmente, a distribuição de renda no País continua desigual: metade das famílias nordestinas viviam com até R$ 214, enquanto no Sudeste o rendimento médio era de R$ 441.
Nenhum comentário:
Postar um comentário